claudia mandou pra gente (ou só o rádio salva)…

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Só o rádio salva

Arnaldo Bloch O COLUNISTA ESCREVE AOS SÁBADOS

No mundo AM podem mudar as vinhetas, mas a maneira de se comunicar não muda nunca

 

Sempre que o coração aperta, que as coisas parecem ir por um rumo existencial sem solução, me refugio no rádio. Não no rádio que passa na internet, com seus milhares de estações pré-programadas em nichos, nem nos portais de rádios espalhadas pelo mundo (o Transglobe de meu pai, com aquele dial mágico, já fazia isso em 1971). Meu porto seguro é o AM, com seu som mono, seu timbre abafado, sua sintonia apertada, como o coração que eu dizia. Já era assim na infância, quando ouvia com os pais a “Turma da Maré Mansa”, e continua a ser assim agora, já que até o charme das FMs passou, a Fluminense morreu, o espírito da Cidade morreu e a MEC, sem o Arrigo, foi assassinada, embora não de todo. Se não posso mais transcender o ser através da cultura pseudoinútil e dos anúncios da Rádio-Relógio (única instância em que o tempo, como o conhecemos, era um parâmetro que fazia sentido), posso, ainda, deliciar-me com os bordões infinitamente renováveis de Édson Mauro no futebol, voz amiga que pareço conhecer de tempos imemoriais, e não adianta ver a foto no Google, aquele não é ele, o verdadeiro Édson Mauro é o que a voz evoca numa imagem difusa que paira sobre a lógica. No mundo AM podem mudar as vinhetas, ligeiras atualizações, mas, na essência, a maneira de se comunicar não muda nunca, é sempre efetiva, eficaz, eficiente, para a dona de casa, o taxista, o desportista, o plantonista, o solitário, a família, os amantes e os cornos. Se ontem na Globo havia o Saldanha, o Jorge Curi, o Waldyr Amaral — hoje há o Penido gritando “bota o pé na forma, bicho!”; o José Carlos Araújo, que, depois de abastado purgatório no sistema bancário de rádio, volta ao tubo pela Tupi ao lado do Apolinho, e trava-se, com a graça dos deuses, a guerra entre Penido, o Garotão-vingador, e o Garotinho, que jamais abriu mão de sua marca, nem quando um político malfamado lhe surrupiou a alcunha. E lá vem a nova geração, Hugo Lago, Camila Carelli, e, na mediação, o papo multifocal de Zeca Marques, com suas sapatadas no ventilador da bola, do samba e das canções de motel (o Good Times 98 agora virou grife de horário AM). Meu coração bateu, preocupado, quando Felipe Cardoso, com seu jeito entre o raivosinho e o paternal, deixou de comentar jogos, mas hoje comemoro sua onipresença como âncora absoluto da Central da Bola. Devo confessar que me vejo bastante apegado à Globo. Era a rádio que mais ouvia antes, continua a ser, por motivos que dizem respeito à cultura dos primeiros anos, mas com certeza também à qualidade e a um certo espírito de bate-papo que jamais cessa. E a um padrão de vinhetas, de chamadas, pelo qual se continua a zelar, os nomes dos times ecoados, os dos locutores cantarolados, o assovio na marcação de tempo, as sonoplastias que revivem nos nervos emoções que remontam ao tempo em que nem palavras havia, tempos povoados de eletricidade estática num Brasil abafado por nuvens e tremores. Hoje, quando ligo a TV e vejo Eduardo Cunha tomando conta do país, Lula em desespero, Dilma falando em mulher sapiens, o Dunga malhando afrodescendentes e continuando no cargo, juristas dizendo que o ambiente prisional é agradável porque os meliantes “encontram seus amigos no pátio da prisão”; quando a delação vira a única instância da Justiça; quando, em meio ao genocídio perpetrado pelo Estado Islâmico a questão central é se o Caetano vai dar show em Israel; quando me vejo enclausurado em engarrafamentos de duas horas de Copacabana a Botafogo e sei que nunca mais sentirei aquela maresia, e que o fedor do posto 5 não cessará jamais; então, só quero ligar o rádio e ouvir a estática do AM, e cada vez meu interesse se estende — exceção feita aos programas religiosos, muito embora estes me façam lembrar de papai, que adormecia com o radinho encostado no ouvido, e, para dormir, sua preferência eram os pastores mais apocalípticos, de ele achava graça, escutava aquilo como se fosse um radioteatro do fim do mundo, e se alguém desligava a gritaria, ele acordava com um urro, temeroso do silêncio. Mas avanço, e, em noite fria dessas, a caminho, ouço o Alexandre Ferreira, com seu programa de mela-cueca, ajudando viúvos e viúvas a encontrar parceiros. Não é meu caso, ando feliz nessa coisa de amor. Mas o Alexandre, entre uma e outra solidão, queria saber do ouvinte qual a melhor coisa para fazer no frio, e as respostas, por zapzap ou telefone, pouco variavam: fazer amor, dormir ou tomar chocolate quente. A certa altura o comunicador se queixou, mandou mudar o disco, e me ocorreu que gosto de tomar sorvete no frio: não derrete com facilidade, é possível fruir sem sujar a mão, a roupa, a casa. No primeiro sinal vermelho gravei minha mensagem: “Alexandre, no frio a melhor coisa é sorvete, pois não derrete”, e me identifiquei, unicamente, como “Arnaldo do Leblon”. Já no portão da casa da namorada, ouvi minha voz soar e demorei a crer que era mesmo eu. O locutor disse: “Olha essa aqui”, o sonoplasta jogou uma risada marota e um som bizarro de mola maluca, e o Alexandre disse que a coisa era muito bem pensada, e nunca me senti tão reconhecido na vida como nestes minutos anônimos. Aliás, como diria a Rádio-Relógio: (…) nos países frios o consumo de sorvete aumenta no inverno (…) você… sabia? (…) Casas Pernambucanas (…) Magazine Uzai (…) Funerária Já Vai Tarde (…) sete horas, dois minutos, zero segundo (…) e o resto é silêncio e solidão.