Durante os anos 1980 e 1990, grosso modo, eram poucas as opções “jovens” para passar o carnaval na cidade. Existiam os tradicionais blocos e bandas da Zona Sul e da Zona Norte, voltados principalmente para seus moradores. Existiam também os grandes blocos do Centro, abandonados à sua própria sorte na época. A sensação era de certo esvaziamento da festa de rua. Além disso, no geral, fantasia era algo que ninguém usava (a não ser que fosse parte de uma turma de bate-bola ou de escola de samba). Cantar marchinhas, só em bailes de salão. Ficar em casa vendo desfile pela televisão ou viajar para “carnavais” fora da cidade eram as opções que restavam. Na virada do século, porém, isso começou a mudar.
Sou de uma geração que viu “de dentro” o surgimento do “novo-velho” carnaval de rua do Rio. Estava na faculdade (amém IFCS!) quando amigos próximos e amigos de amigos começaram as primeiras formações de grupos que, hoje, são responsáveis por alguns dos blocos mais concorridos. Aqui, arrisco uma hipótese de jornal: esses e outros blocos cruzam suas histórias com um movimento sonoro e cultural mais amplo na cidade. Nos anos 1990, a explosão do mangue bit de Recife (ou beat, como queira) abriu caminhos para uma certa redescoberta de sonoridades populares brasileiras (maracatu, coco e embolada, por exemplo). Vale lembrar também que foi nessa época a reocupação da Lapa como um espaço de retomada do samba em bares como Semente e Carioca da Gema. Essa abertura musical “rumo ao Brasil” ocorreu justamente no período em que a cidade se encontrava mais dividida do que nunca pela violência urbana.
Nessa época, tínhamos em funcionamento três frentes sonoras no Rio que, a meu ver, colaboraram para formar os atuais blocos da cidade. Na primeira, uma ideia vaga de “mistura” era a regra, seja pelo impacto da fusão poderosa que o Recife produzia (e de suas alfaias, seus agogôs e suas percussões), seja pela necessidade difusa de se encontrar um ponto de convergência cultural na cidade. Essa “mistura” ficou marcada pelo groove brasileiro de bandas como Pedro Luís e a Parede e Farofa Carioca. Em uma segunda frente da música pop-jovem da época, ocorreu uma entrada massiva do forró como gênero popular da juventude universitária (e aqui vale ressaltar a pouca adesão da axé music baiana por parte desses segmentos). E, por fim, tínhamos na terceira frente as periferias da cidade e sua juventude inventora de batidas contemporâneas. Eles aprofundavam o funk e cada vez mais ouviam e produziam rap e reggae — ritmos da diáspora africana nas Américas. Eram sons que confirmavam um perfil mais urbano e ácido sobre o carioca. Bandas como Planet Hemp e O Rappa são exemplos bem-ucedidos desse universo. Muitos outros ritmos e grupos atuavam na época — como o rock independente, a cena eletrônica, o pagode radiofônico ou a MPB mais tradicional —, mas nenhum deles envolveu com tanta intensidade a geração que atravessou a virada do século na cidade fundando blocos.
E o que esse papo todo tem com o atual carnaval carioca? Três de seus principais nomes são frutos diretos desse contexto que soma uma matriz percussiva brasileira, a adesão aos sons da cultura popular e a intensidade das batidas de funk em marcações mais aceleradas. O Cordão do Boitatá, cujo primeiro desfile foi em 1999, tem entre seus fundadores músicos e pesquisadores do folclore brasileiro. Seus desfiles são responsáveis por reintroduzir no carnaval de rua de sua geração o bloco com as marchinhas tradicionais, a circulação pela parte antiga do Centro e a fantasia como regra, não mais como exceção. Já Monobloco, criado pela Parede percussiva de Pedro Luís, fez seu primeiro desfile de batucadas na Gávea, em 2000. O Céu na Terra, inaugurado com um desfile inesquecível pelas ruas de Santa Teresa em 2001, passou a dividir com as Carmelitas o lugar de bloco do bairro. Seus integrantes também eram em sua maioria estudantes de música, antropólogos e pesquisadores musicais com interesse pela cultura brasileira e seu folclore.
É claro que o carnaval carioca de rua não ressurgiu neste século apenas por conta desses blocos. São exemplos próximos de certo universo musical e cultural que alimentou uma geração no final dos anos 1990. Os desfiles dos Escravos da Mauá no Largo da Prainha ou a redescoberta do Bola Preta e do Cacique de Ramos são outros eventos fundamentais para o que vemos hoje. Também é claro que estar na rua com a alegria de se fantasiar, de atravessar a cidade, de se perder por aí, tudo isso sempre existiu em algum nível. Mas o que vemos hoje é diferente.
Chegamos a um carnaval com inúmeros blocos temáticos, cuja ênfase na festa às vezes é maior do que no samba. Isso vem causando, inclusive, uma série de críticas por parte dos que vivem mais próximos do universo tradicional das escolas, quadras e blocos tradicionais de bairro. Críticas à parte, sem dúvida foi a partir de 2000 que uma geração reocupou as ruas e liberou seus corpos. E isso, parece, não tem mais volta.