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“discoteca básica” da revista bizz…

MALPRACTICE (1975)

– fevereiro de 1990, edição número 55 –

Uma das maiores causas do impacto do punk rock residia na relação de igual para igual entre os grupos e suas platéias: uma suarenta comunhão em algum pub enfumaçado, que se opunha formalmente à frieza burocrática da maioria dos concertos em grandes arenas. Pois esta postura inovadora teve sua origem ainda no início dos anos 70, paradoxalmente dentro de uma corrente dita “revivalista” – o Pub rock britânico. Eram bandas que tomavam como profissão de fé o rhythm’n’blues das décadas de 50 e 60, com fama restrita apenas aos bares especializados no estilo, mas que arrastavam um público fiel e cada vez mais volumoso aos locais onde se apresentavam. Nesta tradição inscreveram-se grupos como o de Brinsley Schwarz (do qual participava Nick Lowe), Ducks Deluxe, Dave Edmunds, Graham Parker e, de modo especial o Dr. Feelgood.
Formado em 1971 pelo cantor gaitista Lee Brilleaux, o guitarrista Wilko Johnson e o baixista John B. Sparks – os três egressos do circuito local de Canvey island – junto ao baterista John “The Big Figure” Martin, o grupo logo começou a causar sensação, não só pelas endiabradas performances de Lee e Wilko ao vivo mas também devido ao próprio repertório escolhido: uma seleção de clássicos do r&b, assinados por nomes como Willie Dixon, John Lee Hooker, Chuck Berry e Bo Diddley entre outros, além de músicas próprias (na maioria, compostas por Wilko).
Este reconhecimento do público teve, porém, que esperar três longos anos para ser partilhado por uma gravadora. Apenas no fim de 74 o grupo conseguiu um contrato, lançando seu álbum de estréia _ “Down by the Jetty” – no início do ano seguinte. Deliberadamente gravado em mono e com quase todas as canções registradas em um só take, o disco era um retrato fiel da rudeza do som do quarteto e firmou definitivamente a reputação de Wilko enquanto guitarrista (recebendo elogios rasgados de Pete Townshend e até sendo cogitado para substituir Mick Taylor nos Stones).
Ainda em 75 o Dr. Feelgood lançou o seu segundo álbum, “Malpractice” (termo usado para designar imperícia médica). O LP trazia depurada a energia em estado bruto de seu antecessor, com maior esmero na produção, mas mantendo o mesmo despojamento em suas onze faixas (sem dubs). A técnica sui generis de execução de Wilko – com seus riffs e solos secos, tocados com os dedos da mão direita em vez da palheta – mostrava-se mais inspirada do que nunca, bem como suas composições. Canções como “Back in the Night”, “Going Back Home” (esta em parceria com Mick Green), “Don’t Let Your Daddy Know” e “You Shouldn’t Call the Doctor (If You Can’t Afford the Bills)” transpiravam o mais puro r&b e formavam um conjunto imbatível junto às sensacionais covers de “I Can Tell” (Bo Diddley), “Rolling an Tumbling” (Muddy Waters), “Don’t You Just Know It” (Huey “Piano” Smith) e “Riot in Cell Block N.”9″(Leiber/Stoller). Um santo remédio que, como receitava a contracapa, devia ser tomado dez vezes ao dia.
Em 77, depois de um disco ao vivo (Stupidity) e outro de estúdio (Sneakin Suspicion), Wilko abandonaria o Dr. Feelgood, formando em seguida o efêmero Solid Senders e acompanhando os Block Heads de Ian Dury por um certo tempo, antes de voltar para o circuito dos pubs. Lee insistia em carregar o nome do grupo (mesmo depois da saída do Sparks e “The Big Figure” em 82) com outros músicos, porém sem nunca conseguir repetir a fórmula mágica de “Malpractice”. Afinal, foi com este disco que o bisturi do Dr. Feelgood efetuou um corte profundo nas veias do rock’n’roll.

Celso Pucci