aTRIPA, o barão & a bicharada…

Assunto: URBANISMO

“Olha aí Maurício!
Você e o Nandão falaram sobre urbanismo no roNca da semana passada. Só por curiosidade, leia esta crônica do Carlos Drummond de Andrade sobre um parente longínquo dele. Um urbanista que saiu daqui da Itabira do Matto-Dentro pra mudar a cara do Rio de Janeiro na segunda metade do século 19.

“O ANIVERSÁRIO DO BARÃO

Carlos Drummond de Andrade
(Jornal do Brasil – 01/05/1975)

Na íngreme Rua de Santana de Itabira, onde nasceu em 1º de maio de 1825, o garoto João Batista, filho de Maria do Carmo, ficou sendo, para toda a gente, o Batistinha. Mas o diminutivo não lhe conviria no correr do tempo e, ao morrer no Rio de Janeiro em 7 de agosto de 1897, era Barão.
Entre uma data e outra, João Batista fez coisas, muitas e determinantes de outras coisas, que influíram na vida de uma cidade, o Rio, e até na do país. Não foi à toa que se ligou ao dinâmico Mauá, em empreendimento como a estrada de ferro hoje chamada Central do Brasil. Seu espírito ávido de criação afastou-o cedo do pequeno meio paroquial, levando-o à capital do império. Na Corte, João Batista sentiu-se à vontade para planejar, fazer e acontecer.
Fez um bairro inteiro, onde havia o matagal da Fazenda do Macaco e hoje se refugiam os últimos traços do espírito genuinamente carioca: Vila Isabel. Abriu nele uma larga avenida, antecipadora das modernas vias de circulação urbana. E para que a vida nesse bairro não fosse uma sucessão escura de bocejos, presenteou-o com um parque de 800 mil metros quadrados, onde plantas e animais nativos e exóticos poderiam ser apreciados e se fariam estudos de zoologia e zootécnica.
Era uma novidade completa. Lotear terrenos pede visão comercial, instinto de lucro, mas João Batista queria combinar o lucro e senso urbanístico, o gosto da natureza e do lazer, como fórmulas de uma comunidade saudável. Não foi compreendido inteiramente. À certa altura, o jardim zoológico dava prejuízo. Teve de requerer à ilustríssima Câmara Municipal (por que as câmaras não são mais ilustríssimas? é uma pena) licença para estabelecer lá dentro jogos públicos sob fiscalização policial, a fim de honrar as despesas com manutenção e desenvolvimento da iniciativa, pioneira no Brasil.
Nasceu aí o Jogo do Bicho, instituição nacional, trazida por um mexicano, um tal Zevada, a princípio um mero atrativo para a freqüência do Zôo. Mas a coisa era tão bem bolada que acabou se espalhando fora dos portões do estabelecimento, e hoje cobre o país inteiro. João Batista não tem culpa nisso. Talvez seja mais correto dizer: não tem glória nisso. Pois enfim, o Jogo do Bicho, rotulado de contravenção penal, é tão querido do povo e tão radicado como hábito brasileiro, que o Governo se apresta para oficializá-lo, sob o título de Zooteca. (Tirando-lhe possivelmente o encanto do jogo espontâneo, livre, baseado na confiança que inspirem banqueiros e bicheiros).
Todos os biógrafos de João Batista fazem questão de lembrar que ele não foi absolutamente banqueiro de bicho nem inventor desse jogo imaginoso. Certíssimo. Mas se fosse o inventor, que mal haveria nisso? A inteligência criadora não precisa arrepender-se de uma concepção que dá alegria e esperança a muita gente, e que não é responsável pelos crimes derivados de sua prática. Vamos amaldiçoar o vinho, vamos proibir a uva porque muitos bêbados se arruínam e às suas famílias? Crimes e erros cometem-se à margem ou à sombra de quaisquer instituições, respeitáveis ou anódinas, e não bastam para condená-las; elas devem ser julgadas em si. O jogo inocente, que conquistou a simpatia de toda uma população, merece pelo menos indulgência, em vez de ser julgado por um moralismo hipócrita, cujas defesas se associam veladamente à sua exploração.
Mas deixemos de lado os bichos do Barão, hoje espalhados sobre todo o território pátrio. João Batista foi também partidário da Abolição, e deu o exemplo em casa, alforriando os seus escravos. Em política era liberal, pertencendo ao clã mineiro dos “Luzias”, isto é, ligado aos revolucionários de 1842, vencido mas não convencidos. Foi precursor de urbanismo, tendo como braço direito Bittencourt da Silva, projetista de sua Avenida 28 de Setembro. Co-proprietário dos JORNAL DO BRASIL. Empresário teatral, apresentou aos fluminenses a trágica Adelaide Ristori e o violinista Sarazte. Deu ao Rio de Janeiro uma linha de bondes. Um ano antes de extinguir-se a Monarquia, esta conferiu-lhe o título de Barão de Drummond.
Desculpem-me a modéstia de lembrar que hoje o meu primo-longe João Batista Viana Drummond, fundador da Vila Isabel de Noel Rosa e Marquês de Rebelo, está completando, lá do sem-fim, 150 anos de nascimento. Ter um primo barão cutuca a vaidade de clã. Os velhinhos da Rua de Santana, se fossem eternos, a esta hora estariam exclamando, embevecidos:
Sim senhor, o Batistinha, hem? como subiu!”