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domingo no parque…

Uma noite transcendental com os Rolling Stones no Hyde Park

O segundo concerto dos Rolling Stones no Hyde Park, realizado ontem, num domingo de verão alternando céu azul de sol forte e nuvens ameaçadoras, dentro da atual turnê SIXTY, a primeira na Europa sem Charlie Watts, teve um clima de celebração e afirmação.

A 203ª apresentação da banda na cidade onde se formou e se estabeleceu sublinhou com caneta vermelha o vigor da banda, sua capacidade de recuperação dos mais severos golpes, e sua vontade de seguir adiante até onde for possível – sendo que o “até onde for possível” dos Stones está num nível acima de qualquer outro artista em atividade, como demonstrado ontem, por um setlist salpicado de surpresas e rearranjos (ou exclusão sumária) de clássicos que comparecem a todo show.

E funcionou, em muitos aspectos, como uma festa entre familiares e amigos, com esposas, filhos e netos compartilhando a noite – com o caçula de Mick, Devereaux, vestido de Homem-Aranha, correndo pelo gramado na frente da barreira que separava a multidão de 60 mil pessoas do palco, dando tapinhas nas mãos de quem na plateia estendesse o braço para ele se divertir, seguido de perto pela mãe, a bailarina Melanie Hamrick, e a babá asiática. Ou com a filha mais velha de Mick, Karis, sentada num banquinho no mesmo espaço, ao lado de Chris, seu tio, incomodado a todo instante para um selfie com alguém do público. Enquanto isso, o super jovem Chuck “Chucky” Klapow, coreógrafo de Jagger, permanecia atento aos passos de seu pupilo em ação, registrando alguns pontos-chave em seu celular.

Charlie Watts esteve presente, saudado com um vídeo que precede o show – onde aparece tocando, nas diversas fases de sua carreira – e com falas de Mick e coros de “Charlie! Charlie! Charlie!” ecoando plateia adentro.

E Mick e Keith temperaram sua relação eternamente agridoce com momentos de alegria e espontaneidade genuínas, sorrindo, brincando, se cumprimentando, se surpreendendo – mais de uma vez Keith adiantou uma introdução ou um encerramento, pegando Jagger no susto e exigindo ação imediata do frontman para não desandar a música. A produção é de maior espetáculo da terra, a posição deles é no topo da realeza rock, mas ao vivo os Stones sempre surpreendem ao público e a si mesmos, com tropeços acidentais e freios de arrumação de uma banda de garagem entusiasmada o bastante para não se ater a algumas filigranas.

Para a plateia a primeira surpresa do show ocorreu logo de saída, quando, em vez de “Street Fighting Man”– que tem dado o chute inicial dos shows dessa turnê – , os Stones abriram com uma versão furiosa, jubilante e elétrica de “Get Off My Cloud”, antes de engatar uma terceira e elevar a voltagem ainda mais com uma “19th Nervous Breakdown” ultra-pop e cintilante.

“Tumbling Dice” vem logo em seguida, antes da recém-desencavada “Out Of Time” – cantada a plenos pulmões por um público deleitado, que Mick regia como se estivesse num auditório de TV de um programa de auditório, tamanha é sua capacidade de comandar a plateia (do tamanho que for, talvez quanto maior, melhor) com um misto de autoridade e sedução.

Depois de uma “Angie” protocolar e uma “You Can’t Always Get What You Want” participativa, como semopre, a segunda surpresa – “Like A Rolling Stone”– é precedida de uma introdução que atualizava a brincadeira feita por Mick com uma música que Bob Dylan – “vencedor do prêmio Nobel de Literatura”, ele faz questão de frisar – teria feito para Jagger e o grupo. E “You Got Me Rocking” fecha uma meia hora inicial que pode ser descrita como transcendental.

O que veio depois confirmou as expectativas do repertório-padrão da turnê, mas os primeiros 30 minutos de show no domingo entram para o rarefeito Olimpo onde moram as melhores apresentações dos Rolling Stones em seus 60 anos de carreira.

A combinação de Steve Jordan, na bateria, com Daryl Jones, no baixo, embora sempre atenta à dinâmica da cozinha anterior, comandada por Charlie Watts,  hoje oferece a Mick, Keith e Ronnie uma base diferente, mais pesada, mais funky e menos suingada, respeitando convenções musicais de décadas ma injetando toques e energia próprios, elevando o nível do pique dos shows.

Isso se revela mais claramente em “Miss You”– hoje parece outra música, arranjada para o século 21 – e “Jumpin’ Jack Flash”, desacelerada e mais … sutil, digamos assim.

A última surpresa da noite ocorreu não de maneira sonora, mas visual, quando se percebe, de repente, que Keith Richards passou a noite inteira tocando sem seu anel-assinatura, de caveira. Uma ausência extremamente curiosa e significativa, mas que, por ora, fica sem explicação.

O encerramento triunfal – naturalmente, com “Satisfaction”– coroou duas horas de um show com um sabor e um significado muito especiais (em Londres, caramba!) que, com a forte possibilidade de uma nova volta a cidade ser remota, embora não impossível, teve também um sabor de agradecimento e (pelo menos o início de uma) despedida para um público que hoje reflete um mix geracional vbariadíssimo: estão ali desde o jovem casal carregando um bebê no colo a senhoras que podem estar vestindo camisetas com a famosa língua criada pelo designer John Pasche, mas que parecem com aquela sua tia-avó encarangada, já perto dos 80 anos. De “marinheiros de primeira viagem” querendo uma chance (talvez a última?) de ver ao vivo e em ação um ícone do rock aos “usual suspects” que dedicam a vida a acompanhar todos os shows dos Stones, onde quer que eles toquem, custe o que custar. Dos fãs de primeira hora, que encontram ali uma oportunidade de lembrar quem são, a pais e mães carregando filhos e netos para mostrar a eles qual é a de sua banda favorita.

E para todos eles os Stones mantêm seu apelo e sua capacidade de atração, porque desafiam ao tempo e a percalços que descarrilhariam seres menos resilientes. São a história viva do rock e do pop, ainda sendo escrita, com um capítulo final afastado ano após ano, contra tudo e todas as previsões.  São os criadores e os mestres de um idioma musical que, na verdade, pode acabar depois que a banda cessar de existir. Por isso, deixar de ver os Stones no palco – seu habitat natural, mais que o estúdio, porque são performers, são entertainers – não é uma opção. E, por isso, o mundo vai onde estiverem.

Ainda mais se for em Londres.

José Emilio Rondeau

(DAQUI)

aguirre…

WALTER SALLES

São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

Os fantasmas de Fitzcarraldo e Aguirre

Iquitos, Amazônia peruana. Antigos prédios coloniais caindo aos pedaços. Cidades-satélites construídas sobre palafitas, invadindo o rio. Dezenas e dezenas de mototáxis avançando nas ruas esburacadas com um zumbido metálico. Um suor constante nos corpos e nos rostos.
Como Manaus, Iquitos viveu o seu apogeu durante o ciclo da borracha. Depois veio o período da extração da madeira e, mais recentemente, o tráfico de drogas também passou por aqui. Não mais. Há dois anos, chegaram os norte americanos do D.E.A., departamento antidrogas. O tráfico emigrou para a cordilheira ou procurou refúgio na direção de Letícia, fronteira com a Venezuela e o Brasil.
Estou aqui para escolher locações para um filme, mas outros dois não me saem da cabeça: “Aguirre, a cólera dos deuses” e “Fitzcarraldo”, ambos dirigidos por Werner Herzog. Foi ao redor de Iquitos que o diretor alemão rodou esses filmes. Foi também por aqui que ele quase morreu antes das filmagens de “Aguirre”. Teve a intuição de não entrar em um avião que ia trazê-lo de Lima a Iquitos. O avião espatifou-se. Herzog salvou-se.
Esse acontecimento não é um fato isolado na vida de Herzog. Na época em que ele fez “Aguirre” e “Fitzcarraldo”, havia uma qualidade quase messiânica, uma fé inquebrantável a movê-lo, que podem agora ser conferidas por todos aqueles que se interessam pela sua obra. “Aguirre” e “Fitzcarraldo” saíram há pouco em DVD, com uma reveladora faixa de comentários do diretor. Um documentário sobre a relação fratricida entre ele e seu ator-fetiche Klaus Kinski, intitulado “Meu Melhor Inimigo”, completa o quadro.
Kinski está extraordinário em “Aguirre”. O filme narra o caos que se instala no seio de uma das primeiras expedições espanholas que partiram à procura do mito de Eldorado no Amazonas. Malgrado todas as dificuldades de um filme de época e os obstáculos logísticos que Herzog teve de enfrentar, “Aguirre” foi filmado em poucas semanas por uma equipe de nove pessoas… e 450 figurantes. Herzog conta que tudo que poderia fazer parar a filmagem, como a enchente que carregou as balsas cenográficas, era incorporado à matéria fílmica. O resultado é uma obra orgânica, essencial. Revisto hoje, “Aguirre” permanece radicalmente moderno.
A câmera urgente está quase sempre na mão, perto dos personagens, mas há também momentos voluntariamente estetizados. Essa escolha arriscada dá surpreendentemente certo, e a síntese entre o documental e o teatral tem uma força raramente vista no cinema. Poucos filmes falam da ganância e da loucura humana de forma tão arrebatadora e convincente.
A possibilidade de rever “Fitzcarraldo” também projeta luz sobre um filme que foi muitas vezes acusado de ser tão demente, na sua feitura, quanto o personagem que enfoca. Fitzcarraldo foi um aventureiro europeu que chegou à Amazônia à procura de borracha e de riqueza fácil. Autocrático, tido por muitos como escravagista, Fitzcarraldo também alimentava o sonho de trazer a ópera até aquela última fronteira.
“Fitzcarraldo”, o filme, foi uma experiência de rodagem tão traumática quanto “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola. Um outro documentário, “Burden of Dreams”, revela a insanidade do projeto, que se prolongou durante quase um ano. Como tudo que acontece por trás das câmeras acaba permeando o negativo do filme, essa loucura acaba passando para a tela.
E ficando, mas não só no cinema. Subindo o rio Amazonas, entre Iquitos e a colônia Santa Izabel, encontramos os restos do barco no qual foi filmado “Fitzcarraldo”. O casco está adernado sobre uma das margens do rio, tomado pela ferrugem. O motor foi retirado ou roubado. Subimos a bordo. As cabines, o posto de comando, tudo decomposto pelo tempo.
No meio da abordagem, o tempo subitamente começou a virar. Um vento varreu o Amazonas, nuvens surgiram do nada, e uma tempestade se abateu sobre nós. Pulamos para o barco que havia nos trazido ali e, no meio de uma chuva torrencial, voltamos a Iquitos. Olhamos para trás e vimos a velha carcaça pela última vez, até que ela foi lentamente engolfada pela cortina de água. Ainda ouvimos durante algum tempo o ranger do velho barco, que ecoava como um grito agônico de Klaus Kinski.